segunda-feira, 14 de julho de 2008

Quem matou Heath Ledger.


Texto que eu escrevi dois dias após a morte do ator.

Em 1940, Bob Kane criou aquele que seria o grande inimigo do Batman, a sua antítese perfeita: o Coringa. Talvez o Coringa seja a melhor encarnação do mal na literatura do século XX. Sim, porque quadrinhos também podem ser grande literatura. Quem não concorda, pode parar de ler agora.

Durante esses 68 aninhos de idade, o Coringa foi retratado por diversos roteiristas e ilustradores, desde os mais geniais até os mais medíocres. Mas todos colaboraram para que a imagem desse sorridente personagem se fixasse nas mentes infanto-juvenis do mundo todo. Ou pelo menos, daquela parte do mundo dominada pela cultura ianque.

Mas o Coringa é muito mais do que o pesadelo noturno de crianças impressionáveis. A concepção do personagem tem uma lógica adulta e realmente assustadora. Se o homem é inerentemente bom, a maldade é uma distorção da mente. A maldade não tem lógica nem propósito. E já faz tempo que o Coringa não é apenas mais um vilão atrás de dinheiro. Se o Coringa tem algum objetivo, é tentar injetar um pouco de loucura nas pessoas normais. O vilão traz à tona o mal que se esconde no coração dos homens, em desesperadas tentativas de mostrar que o seu comportamento é o normal. Em A Piada Mortal, de Alan Moore e Brian Bolland, ele (quase) consegue. A dúvida que ele coloca no Batman é a sua grande vitória.

O Asilo Arkham, onde o Coringa passa um tempinho entre uma fuga e outra, representa o mal concentrado, preso, contido. Como se fosse aquela parte da nossa alma que a gente faz questão de esconder e deixar quieta. As fugas em massa do Asilo, como a que acontece no genial Batman Begins (onde o Coringa só está em espírito), são a liberação da loucura presente em cada um de nós.

O fato, gente, é que o Coringa não é mais um mero personagem de quadrinhos. O Coringa existe. Sim, o Coringa existe. Não em carne e osso, é claro. Mas como uma tese sobre a natureza humana. Apenas esboçada quando Bob Kane o criou, mas desenvolvida ao longo dos anos. E quem teve um contato maior com o Coringa, além do bufão inofensivo interpretado por Cesar Romero na série de TV, certamente foi afetado. Quando um personagem consegue transcender a sua função dentro de uma história para se tornar alguém que revela algo sobre nós mesmos, ele passa a ter personalidade própria. Por isso, o Coringa é mais forte que o Batman. O Batman a gente sempre foi, desde que nasceu. Quem nunca disse, aos cinco anos de idade, numa brincadeira com os amiguinhos, a frase “Eu sou o Batman."? O Coringa começa a entrar na gente na fase adulta, quando passamos a pensar sobre a arte. Sim, porque quadrinhos são arte. Quem não concorda, pode parar de ler agora. Adultos, pensamos: “Mas será que eu também não sou um pouco Coringa?”

O fantástico diretor Christopher Nolan parece ter revelado a verdadeira face do Coringa em The Dark Knight. A maquiagem borrada, imperfeita, finalmente faz jus à loucura do personagem: a loucura não é simétrica. Tudo me leva a crer que esse novo filme explora até o limite todas as possibilidades do personagem, todo o seu alcance e tudo que ele tem de terrivelmente verdadeiro.

O mais que promissor Heath Ledger sentiu isso. A carga de interpretar o Coringa, pelo que está sendo revelado nos jornais, o levou ao consumo de remédios para dormir. Isso, associado aos seus problemas pessoais, acabou levando o ator a excessos que terminaram da maneira que todos sabem. Talvez o Coringa tenha revelado a Heath Ledger algo que ele não sabia sobre ele mesmo. E enquanto no mundo todo os fãs do jovem ator choram, alguém está rindo.